terça-feira, 23 de março de 2021

A pintura com os meninos da Lapa

 

André Brown

 

Ao longo dos anos, tenho me dedicado à criação de oficinas de desenho. Observo, de perto, a atratividade exercida pelos desenhos, sobre muitas crianças e jovens. No início da década de 1990, costumava participar de um evento que acontecia na Rua da Carioca, em comemoração do aniversário dessa tradicional rua do centro do Rio de Janeiro, onde eram organizadas várias atividades artísticas e culturais promovidas pela SARCA (Sociedade de Amigos da Rua da Carioca e Adjacências).

Uma dessas atividades era o concurso de pintura sobre o Rio Antigo. Dirigiam-se para lá, no domingo, pela manhã, cerca de cem pintores, profissionais ou amadores, que recebiam a tarefa de pintar uma ou mais imagens que representassem o Rio Antigo – poderia ser uma igreja, um prédio histórico, um monumento ou algum detalhe da arquitetura local. Em uma das edições do evento, escolhi como tema os Arcos da Lapa, com a paisagem do bairro de Santa Teresa ao fundo.

Por volta das oito horas da manhã, encontrei um ponto, para montar meu cavalete, no meio da Lapa, e comecei a desenvolver a pintura. Iniciei o esboço, na tela, e percebi que, debaixo de cada arco do antigo aqueduto, havia crianças dormindo, enroladas em cobertores. Um dos meninos do grupo veio em minha direção, pedindo dinheiro para tomar café. Dei o dinheiro e continuei a pintar a tela. Não demorou muito, o menino retornou. Comendo um pedaço de pão, sentou-se ao lado do cavalete. Ainda mastigando, perguntou sobre o que eu estava pintando. Expliquei-lhe que era para o concurso da Rua da Carioca e que estava começando a pintar os Arcos da Lapa. O menino, então, pela primeira vez, sorriu. Perguntou se eu poderia ensiná-lo a pintar. Como tinha levado material de sobra – tintas, pincéis, papéis e algumas telas pequenas, mostrei como ele poderia fazer um desenho e pintá-lo. Ele ficou ali, ao meu lado, divertindo-se com as tintas e as misturas de cores, enquanto eu continuava trabalhando na minha pintura. Gradativamente, os outros meninos foram se aproximando e sentando-se, em forma de semicírculo, em torno do meu cavalete. Ficaram observando, atentamente, a imagem surgir na minha tela, e começaram a sugerir cores para a pintura.



O trabalho ficou pronto bem próximo da hora limite da entrega. Seria feita uma avaliação popular, que apontaria os premiados do concurso, às 15h. Os dez meninos me acompanharam até o Bar Luís, na Rua da Carioca, para o encerramento da atividade. Quando cheguei ao bar, os outros pintores já estavam reunidos, com seus trabalhos. Posicionei minha tela junto às outras pinturas. A votação começou e os meninos da Lapa votaram no meu trabalho. Terminado o concurso, a organização do evento liberou o bar para a comemoração, distribuindo refrigerantes e lanches para a meninada e a premiação dos artistas.

Esse interesse dos meninos me mostrou que é viável desenvolver arte com crianças que vivem nas ruas das cidades. Situações como essa me motivaram a orientar meu trabalho artístico para a Educação e para a criação de oficinas de desenho, pois, naquela ocasião, sem intenção, planejamento ou recursos, fora do espaço da escola, acabei atraindo a atenção dos meninos para a pintura, pelo simples fato de estar ali pintando diante deles.


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